Ilha do Combu: Tradição e inovação na cultura e no turismo paraense
Texto Matheus Botelho, Tainá Barral e Simone Romero
Imagens e vídeo: Edielson Shinohara e Danyllo Bermeguy
Entre todas as capitais da Região Norte, Belém é aquela que melhor sintetiza a cultura amazônica, reunindo, ao mesmo tempo, um lado urbano, fruto da colonização portuguesa, e outro ribeirinho, formado por comunidades extrativistas tradicionais. Dividindo e ao mesmo tempo integrando esses dois modos de vida, está o rio Guamá. Nos últimos anos, com o crescimento do turismo na região das ilhas, muita coisa começou a mudar nas comunidades que, agora, se organizam na luta para se tornarem protagonistas deste processo de desenvolvimento, buscando a união entre tradição e modernidade.
Quando se fala na capital paraense, a tendência natural é pensar na porção continental do município, mas existe uma outra Belém localizada na margem esquerda do Rio Guamá. É a porção insular, composta por 39 ilhas. A quarta maior delas, e a mais conhecida por sua proximidade com o lado urbano (apenas 15 minutos de distância por barco), é a ilha do Combu, habitada por aproximadamente 200 famílias, mas que recebe, a cada fim de semana, centenas de turistas interessados em desfrutar daquilo que a ilha tem de melhor: as suas opções de lazer, a rica gastronomia e uma visão privilegiada do ecossistema amazônico.
Com a explosão do turismo na última década, a própria dinâmica da ilha mudou. O igarapé Combu, que é como as comunidades tradicionais chamam a região banhada pelo rio Guamá, e o furo da Paciência – braço de rio que é a principal rota de integração entre as comunidades da região das ilhas, passaram a abrigar dezenas de bares e restaurantes, a maioria deles operados por pessoas de fora da ilha.
Junto com o turismo chegaram novas perspectivas para o futuro e, também, alguns problemas. Apesar de ser uma Área de Proteção Ambiental (APA), o Combu sofre com a falta de uma política ambiental mais concreta, capaz de consolidar a sua vocação para o turismo de base comunitária e ecológica.
Existem experiências em curso levadas a cabo com muito sucesso pelos órgãos de turismo e meio ambiente do estado e do município (Setur, BelémTur, Ideflor-Bio) e também por entidades como o Sebrae, mas as comunidades se ressentem com a ausência de programas, por exemplo, na área de saneamento e de descarte de resíduos sólidos. Por isso, a organização em cooperativas e associações para buscar soluções para estes problemas vem ganhando espaço nos últimos tempos.
Os ribeirinhos estão cada vez mais se organizando para tomar a frente do turismo nas ilhas. Um bom exemplo deste movimento é Boaventura Júnior, um jovem de apenas 26 anos nascido e criado no Combu. Mais conhecido como “Boá”, ele administra, junto com a mãe, um restaurante no furo da Paciência e tem uma visão muito aguda do que espera para o futuro da ilha: desenvolver o turismo de base comunitária, criando uma ponte entre a tradição da cultura ribeirinha e as novas tecnologias que chegam trazidas pelo turismo.
Essa é a síntese do projeto que desenvolveu, junto com técnicos do Sebrae e do Ideflor-bio, para implantação de uma rota sensorial por dentro da mata nativa da ilha. “Vamos levar os turistas para percorrerem os caminhos que os moradores da ilha fazem, permitindo que os visitantes interajam e conheçam mais sobre a fauna e a flora nativa. É uma espécie de vivência na trilha. A gente também quer instalar placas com QR Code para que as pessoas possam saber mais sobre as espécies de plantas nativas e sobre o nosso modo de vida”. O projeto da trilha, que já foi definido e mapeado, começa a ganhar reconhecimento internacional: foi aprovado para ser apresentado na ICOTTS’19 – Conferência Internacional de Turismo, Tecnologia e Sistemas, que ocorre de 05 a 07 de dezembro, na Universidad Abierta Interamericana, em Buenos Aires, Argentina.
No restaurante da família, localizado no furo da Paciência, entre as ilhas do Combu e Murutucum, Boá recebe turistas vindos de vários lugares do mundo e oferece para eles a verdadeira experiência amazônica ribeirinha. No “quintal” de casa mostra como é feita a coleta do açaí, subindo nas palmeiras com peconha (laço feito com a palha do próprio açaizeiro para apoiar o pé e ajudar os apanhadores a subirem com a força de suas pernas e braços) para cortar os cachos da fruta, que depois de batida, é servida fresquinha para os visitantes, como acompanhamento do almoço. Aliás, a qualidade da cozinha, comandada pela mãe de Boá, também merece destaque. Peixes sempre fresquinhos e com o tempero típico caboclo. Tudo muito sofisticado em sua simplicidade.
Como uma jovem liderança ribeirinha, Boá sabe muito bem que a chave para o desenvolvimento das comunidades do Combu é preservar o modo de vida tradicional ribeirinha, incorporando novas tecnologias, porém, mantendo os pés fincandos na tradição da economia extrativa que ajuda a conservar a natureza. “Pra quem vem de fora nós somos novidade sempre. A nossa cultura e a gastronomia são os principais interesses deles. Quando o turista chega ele quer ver e ter vivência na gastronomia, no nosso modo de vida. E é isso que estamos mostrando”, explica Boá.
Outra moradora da ilha, dona Ivonete, de 61 anos, conhecida por todos como “Nete”, nasceu e cresceu na ilha, na região denominada igarapé Piriquitaquara, onde aprendeu desde cedo com os pais o trabalho com extrativismo dos recursos da floresta como o açaí, o cacau e, principalmente, a andiroba. “É uma tradição de família. Meu pai e minha mãe sempre trabalharam com andiroba. Naquele tempo a exploração era muito barata, mas ajudava na renda. Hoje ela melhorou, mas falta mais incentivo para nós que somos produtores”. Aos 91 anos, o pai de dona Nete ainda trabalha na extração do óleo da andiroba, ajudando na produção artesanal, mas essa tradição não é absorvida com facilidade pelas gerações mais novas. “A cultura está indo aos poucos. Então, nós que estamos ainda, como meu pai, ainda tem muita vontade de trabalhar nessa área. Mas as pessoas mais novas não querem saber que isso aqui é uma riqueza que eles têm”.
A ciência da andiroba
A tradição familiar da extração do óleo da andiroba não permite que mulheres no período menstrual ou grávidas façam a colheita da semente. E não pode só olhar para a massa da andiroba durante o processo de retirada do óleo, tem que pegar na massa, pois, segundo os antigos, tanto a massa quanto o óleo ficam “fedidos”. Perdem a sua qualidade. Dona Nete explica como funciona a ciência da andiroba:
Para dona Nete, o futuro da ilha em relação ao turismo causa medo. “Falta muita organização para nós mantermos a tranquilidade que temos hoje, porque o turismo está desorganizado dentro da ilha. Enquanto eu acho que está meio bagunçado do outro lado [igarapé Combu], se não fizermos nada, pode chegar até a gente aqui [igarapé Piriquitaquara]”.
Uma preocupação compartilhada pelos moradores da região, como o Charles Teles. há 20 anos residente da ilha do Combu, também na comunidade do Pirquitaquara. Para ele, é triste ver os habitantes da ilha servindo de empregados para donos de bares e restaurantes que não são de lá. “As pessoas vem lá de Belém, põem seus restaurantes aqui, constroem seus negócios aqui e nos contratam para trabalhar para eles”.
Charles sempre teve a sua fonte de renda ligada principalmente ao trabalho com o açaí, o manejo de açaizais, o palmito e o cacau. Contudo, recentemente ele encontrou no artesanato o seu potencial criativo e também um adendo para o sustento de sua família. “Essa história do artesanato eu já sabia fazer antes, mas só agora eu coloquei em prática devido ao turista estar visitando a nossa ilha com mais frequência”. Charles montou uma loja na sua casa com várias peças feitas de materiais coletados da natureza, bem ali no seu quintal, como os cachos do açaí, sementes e banquinhos feitos de madeira customizada. “Eu trabalhava com coisas mais pesadas, hoje em dia eu trabalho num serviço mais leve, aqui em casa mesmo, recebo os visitantes aqui e dou vazão aos meus produtos de forma mais fácil”. Para ele, ter a autonomia do seu próprio negócio é de suma importância: “eu sempre falei: eu quero trabalhar pra mim e ganhar o meu dinheiro aqui no meu lugar porque eu sei que eu tenho capacidade para isso”.
Com o crescimento do turismo na ilha, muita coisa está mudando e os moradores vem buscando se adaptar aos novos tempos. Se há um fio condutor neste caminho para o futuro, este fio é o sentido de pertencimento a um lugar marcado pela cultura cabocla e riberinha, onde o rio é rua e a floresta, mãe protetora. Como muito bem respondeu dona Nete, ao ser perguntada se algum dia pensou em ir embora da Ilha: “Deus me livre! Morar no Combu é uma maravilha!”.
Confira o roteiro de viagem especial que produzimos para o nosso IGTV:
Serviço:
Os barcos saem diariamente, a partir das 9h, da praça Princesa Isabel, no bairro da Condor. A travessia dura em média de 10 a 15 minutos e custa entre R$ 7 e R$10 por pessoa.
A praça Princesa Isabel possui área para estacionamento.
Os restaurantes funcionam, geralmente, de terça-feira a domingo, das 10h às 18h.
Bar e Restaurante Boá na Ilha:
Dias de funcionamento: de sexta à segunda e em todos os dias das férias de julho.
Horário: das 10h às 18h
Contato: 98049-4471
Instagram:@boanailha